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JUSTIÇA E DIREITO: ANTÓNIMOS OU SINÓNIMOS ?
pelo Irmão A.M. Gonçalves
Mestre Maçom
RL Anderson n° 16, Grande Loja Regular de Portugal/GLLP


Voltaire

Foram necessários séculos para devolver a justiça
à Humanidade, para entender quão horrível é que
o grande número semeie e um pequeno recolha
Voltaire (Lettres Philosophes)


O apelo à Justiça e a invocação de um Direito Justo tem marcado a história do Homem desde a Criação e constituem permissas, creio essenciais, para o seu aperfeiçoamento e evolução num tempo, em que o sobressalto do abismo e o abeirar do caos coloca novos e mais complexos desafios à Inteligência humana.

Thomas Hobbes

Daí que a percepção das diminutas capacidades do Homem perante os desafios da Natureza e a loucura das próprias irreflexões e desvarios humanos possa introduzir um factor de racionalidade e de prudência na nossa acção, na relação com o Outro e, sobretudo, perante a explosão das nossas paixões. Acredito que os grupos de referência, como os Maçons, que partilham um conjunto de valores básicos, profundos e perenes, e praticam em nome de uma ética <metamoral>, isto é para além da moral[1], a prudência e a tolerância como formas de estar, têm uma obrigação particular, no tempo presente. Um tempo marcado por  alegados Choques de Civilizações, pela intolerância e o exarcebar dos ódios, pelo regresso a um obscurantismo e irracionalidade medievais que os nossos antecessores filosóficos, os Iluministas do Século XVIII, combateram como expressão da parte animalesca, brutal, que reside no fundo de nós. O homem é o lobo do próprio homem, ensinou Thomas Hobbes, no Leviatã, mas esquecemo-lo, com frequência.

1. Justiça e Direito na filosofia e na ciência jurídica

Justiça vem do étimo latino justitia  e significa conformidade com o direito, dar a cada um o que por direito lhe pertence, praticar a equidade. Direito vem do étimo latino directu e significa o que é recto, probo e justo e, numa acepção mais restrita, o conjunto de disposições legais que regulam obrigatoriamente as relações dentro de uma determinada comunidade.

Os dois conceitos surgem, assim, aparentados, raramente em confronto e correspondem a formas complementares de encarar o que é justo, logo devido e de impor o que é devido, por ser justo. Tratam-se, também, de conceitos filosóficos utilizados pelos pensadores da Antiguidade e retomados por outros, até aos nossos dias, encontrando acolhimento na ciência jurídica, na especulação filosófica, na teologia cristã (e em outras religiões), na filosofia maçónica. São conceitos estruturantes a uma ética de valores e de conduta.

Platão concebia a Justiça como harmonia, harmonia desde logo entre as três classes da Cidade, os filósofos, os guardas e os operários, harmonia entre as 3 partes da Alma: o apetite, o coração e a razão. Na sua obra República, Platão coloca na boca de Sócrates que a Justiça quer que o homem administre bem os seus assuntos domésticos, que tome o comando de si mesmo, que ponha ordem em si mesmo e ganhe a sua própria harmonia[2]. Aristóteles concebe a justiça como algo que devemos uns aos outros, consistindo numa certa equidade pela qual a justa e definitiva exigência do outro (nem mais, nem menos) é satisfeita.  A justiça respeita aos outros já que ninguém deve justiça a si próprio. Aristóteles distingue a Justiça Distributiva que se ocupa da repartição equitativa dos bens e honras na Cidade, da Justiça Coerciva que se ocupa em aplicar punições às vantagens obtidas pela força e com o desrespeito do que é devido.

Jean Jacques Rousseau

Rousseau encara, por sua vez, a Justiça como um sistema de legislação que deve estar, antes de tudo, ao serviço da liberdade e da igualdade. No Contrato Social diz <se considerarmos humanamente as coisas desprovidas de sanção natural as leis da justiça são vãs entre os homens. Produzem somente o bem do malvado e o mal do justo, quando este as observa para com todos sem que ninguém os observe para com ele. Por conseguinte tornam-se necessárias convenções e leis para unir o direito aos deveres e conduzir a justiça ao seu fim>[3]. Immanuel Kant Kant equivale a Justiça ao livre arbítrio: toda a acção é justa quando pode fazer coexistir a liberdade e o arbítrio de cada um com a liberdade do outro segundo uma lei universal e na medida em que o máximo (do arbítrio e da liberdade) permita essa coexistência[4]. John Rawls Mais perto de nós, o filósofo americano, John Rawls afirma que a justiça é a primeira virtude das instituições sociais tal como a verdade o é para os sistemas de pensamento. Uma teoria, por mais elegante ou parcimoniosa que seja deve ser rejeitada ou alterada se não for verdadeira; da mesma forma, as leis e as instituições, não obstante serem eficazes e bem concebidas devem ser reformadas e abolidas se forem injustas. Cada um beneficia de uma inviolabilidade que decorre da justiça, a qual nem sequer em benefício do bem-estar da sociedade como um todo pode ser eliminada[5].

O Direito é, por sua vez, identificado com o que é legítimo, com o que deve ser, em oposição ao que existe, o que é. O conceito introduz uma preocupação normativa, ordenadora, reguladora e, assim, fala-se em direito positivo querendo referir o conjunto de leis, usos e costumes que regem as relações entre os homens em dada comunidade política, que são assumidos pelos seus membros como algo de vinculativo e obrigatório, sujeitando-se, quem os desrespeite, a sanções; e em direito natural quando se  afirma que subsistem um conjunto de prerrogativas que cada homem tem o direito de reivindicar, a todo o tempo e em qualquer condição, pois são parte da natureza da espécie humana.As quais, no limite, devem iluminar a feitura das leis. Hobbes escreve no Leviatã que o Direito da Natureza que os escritores políticos chamam jus naturale é a liberdade de cada um usar a sua própria potência, como quer por si mesmo, para a preservação da sua própria natureza, dito de outro modo, da sua própria vida e por consequência de fazer, segundo o seu julgamento e a sua própria razão, tudo o que conceber ser o melhor meio adaptado a esse fim[6].

Transposto para a Ciência Jurídica os conceitos adquirem contornos mais exigentes. Para Ulpiano, jurisconsulto romano, "A justiça consiste em dar a cada um o que é seu". Mas para se poder dar a cada um o que é seu, é preciso saber, desde logo, o que pertence a cada um. Ora, o princípio da justiça é invocado, exactamente, para dirimir a disputa entre partes que invocam aquilo que é seu. A justiça processual é aquela que é exercida pelo juiz, estabelecendo paridade entre o dano e a reparação, entre o crime e a pena a este aplicada. Por isso, do ponto de vista do Direito, a justiça é ideia, valor e ideal. Como ideia, é a representação abstracta do estado de pleno equilíbrio da vida social; como valor é uma ponderação da importância que se atribui aos bens, valoração que varia no tempo e no espaço; como ideal é uma meta para onde se caminha sem nunca a realizar, plenamente. Na verdade, os valores sociais têm existência histórica, não são perpétuos, pelo que a ideia de justiça varia constantemente: o que era justo para os antigos talvez não seja justo para nós, embora possa voltar a sê-lo no futuro. O debate sobre a admissibilidade da pena de morte, no Estado de Direito, é vivo exemplo dessa tensão entre direito e justiça.

Do ponto de vista da Ciência Jurídica, o Direito é o conjunto de normas sociais obrigatórias, que asseguram o equilíbrio das funções do organismo social e que são impostas, coercivamente, pelo Estado. A palavra direito apresenta uma pluralidade de sentidos análogos. A palavra direito provém, como vimos, do latim directu, que substituiu a expressão jus, do latim clássico, por ser mais expressiva. No direito romano usava-se o jus e o fas. O jus era o conjunto de normas formuladas pelos homens, destinadas a dar ordem à vida em sociedade; o fas o conjunto de normas de origem divina, religiosa, que regiam as relações entre os homens e as divindades. No início da História de Roma o fas imperava, cabendo a sua aplicação aos pontífices, ministros supremos da religião do estado. Os pontífices guardavam em segredo os princípios jurídicos que deveriam ordenar as acções humanas. Daí, a palabra sanção, de sancionar, santificar, no sentido que os sacerdotes santificavam a lei. A palavra jus tornou-se mais habitual com a secularização do poder e é utilizada pelos romanos em dois sentidos: objectivo e subjectivo. Em sentido objectivo (jus norma agendi) quando se refere ao jus civile, ao jus gentium próprio da cidade e das relações externas.; em sentido subjectivo (jus facultas agendi) quando se refere ao jus fruendi, jus vendendi, o direito de cada indivíduo.

O conceito foi introduzido no vocabulário das nações, por via da influência romana

2. Justiça e  Direito na tradição do Cristianismo

Para os pensadores da Igreja (S. Tomás de Aquino, Grotius, Marsílio de Pádua) a Justiça é uma qualidade moral ou um hábito que aperfeiçoa a vontade e inclina a dar a cada um o que é seu. É uma das virtudes cardiais, porventura a mais importante. As outras são a prudência, que aperfeiçoa o intelecto e inclina o homem prudente a actuar em todas as circunstâncias de acordo com a recta razão, a preserverança, a temperança e a caridade. Porque o  Homem é um ser livre e inteligente, criado à imagem de Deus, tem uma dignidade e um valor significativamente superior ao mundo material e animal que o rodeia. O Homem, crê o Cristianismo, pode amar, conhecer e adorar o seu Criador, tendo sido feito para tal fim, que só ele pode alcançar no futuro, através da imortalidade, e da vida eterna para que está destinado. Deus deu-lhe capacidades e a sua liberdade por forma a que possa, livermente, trabalhar para o cumprimento do seu destino. Ele está, por obrigação moral, obrigado a cumprir os desígnios do Criador, deve exercer as suas capacidades e conduzir a sua vida de acordo com tais desígnios.

Mas porque está sujeito a tais obrigações é investido de certos direitos,  dados por Deus e primordiais, anteriores ao Estado, independentes dele próprio. Estes são os direitos naturais do Homem, concedidos a ele pela sua própria natureza, sagrados como a própria origem do Homem, e como tal inalienáveis. Além destes, o Homem disfruta de outros direitos conferidos pelo Estado e ainda outros ganhos com o seu próprio esforço. Todos estes direitos, seja qual for a sua origem são, segundo crê o cristianismo, objecto da virtude da Justiça. A Justiça exige que os homens sejam deixados na plena fruição dos seus direitos.

O Direito como substantivo (o meu direito, os seus direitos) designa, portanto, o objecto da Justiça. Quando uma pessoa diz ter o direito a uma coisa, ele tem um tipo de domínio sobre essa coisa, que os outros são obrigados a respeitar. O Direito pode, assim, ser definido como a autoridade legal ou moral de possuir, exigir ou fruir a coisa como sua. Distingue-se da obrigação porque no direito podemos fazer isto ou aquilo e na obrigação devemos fazer isto ou aquilo. O direito é uma autoridade moral ou legal e por isso distingue-se da mera superioridade física ou do exercício da força. A doutrina cristã usa a lei num sentido em todo idêntico ao que no campo da filosofia vimos ser interpretado o direito: um sistema de normas, de leis, de regulamentos impostos à observância dos homens e tutelados por um poder sancionatório que legitimamente as fez e aplica.

Porque o Homem é um ser societário, social e culturalmente determinado na sua conduta moral não é uma realidade historicamente determinada, mas vivenciada[7].

Isso ocorre, também, porque o tribunal da consciência moral é a interiorização do tribunal moral da comunidade, cujo juízo varia ao longo dos tempos. Por isso, a moral como ética da consciência materializa-se na constituição de um foro interno que surge, em momentos de crise, quando a moral social – reflectida no direito – parece inadequada, insensível ao injusto e o homem, para salvar-se, pelo menos em termos individuais, refugia-se no seu foro interno, na intimidade da sua consciência moral.[8]

Exemplos desta tensão entre uma recta razão, materializada nas condutas morais e o direito, enquanto consensualização da moral vigente, podem ser encontradas nos actuais debates sobre a pedofilia e o terrorismo, como formas limites de afrontamento a um código moral mínimo (entre as várias concepções de Bem) e expressão de uma justiça que se reivindica severa e exemplar, por parte da opinião pública, nem sempre acolhida pelos processualistas, em nome do equilíbrio entre os crimes e ilícitos e a medida das penas, isto é do direito.

É muito curiosa a forma como os autores das Escrituras tratam o problema da Justiça e do Direito, ora identificando a Justiça com o exercício dos Justos ora assemelhando Justiça e Lei, quando se referem às Tábuas da Lei e às instrucções dadas pelo Senhor a Moisés. Vamos exemplificá-lo com algns excertos tirados da Bíblia.

Velho Testamento, Êxodo, cap. 23, vers. 6-9[9]:

Não falsificarás a norma dos teus pobres no teu processo. Manter-te-ás longe da causa mentirosa. Não matarás um inocente e um justo porque Eu não declaro justo um culpado. Não aceitarás presentes, porque o presente cega aqueles que vêem e perverte as palavras do justo. Não oprimirás um estrangeiro residente; vós conheceis a vida do estrangeiro residente porque o fostes na terra do Egipto

Velho Testamento, Provérbios, Pr 21, vers. 21:

Aquele que procura a justiça e a misericórdia conquistará a vida, a justiça e a glória

Novo Testamento, Livro de Amós, cap 2, vers. 6-8.

Assim fala o Senhor:

Por causa do triplo e quádruplo crime de Israel não revogarei o meu decreto. Porque vendem o justo por dinheiro e o pobre por um par de sandálias; esmagam sobre o pó da terra a cabeça do pobre, desviam os pequenos do caminho certo[10]

 

A invocação da Justiça como observância da Lei do Senhor é clara nos seguintes excertos. Velho Testamento, Génesis, cap. 6, vers. 6-9:

Este é a descendência de Noé. Noé era um homem justo e perfeito entre os homens do seu tempo e andava sempre com Deus[11]

Velho Testamento, Deuteronómio, cap. 6, vers. 24 e 25:

O Senhor ordenou-nos, então, que puséssemos em prática todas estas leis, que temessemos o Senhor, nosso Deus, a fim de sermos eternamente felizes, para nos conservar a vida, como acontece hoje. Deste modo, seremos justos, porque tomámos cuidado em praticar todos estes mandamentos diante do Senhor, nosso Deus, como ele nos ordenou

Ainda, mais claro, nesta belissima citação do Novo Testamento, S. Mateus, cap. 5, vers. 17-8, nas palavras de Cristo:

Não penses que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas levá-los à perfeição. Porque em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, não passará um só jota (iod) ou um só ápice da Lei sem que tudo se cumpra

A excelência da Lei Divina resulta, segundo o cristianismo, da consciência da sua obrigatoridade pela comunidade dos crentes, implicando a falta do seu cumprimento o sancionamento pela Lei Moral e a punição pelo Criador no dia do Julgamento Final.

 

José de Ribera (1591-1652

3. Justiça e  Direito na Moral Maçónica

A Maçonaria é uma Ordem, uma Obediência iniciática e espiritualista que observa um código de normas que se inspiram na tradição judaico-cristã (e para alguns nos ritos templários), e que se funda, em primeiro lugar, na crença da existência de Deus, Grande Arquitecto do Universo[12]. Em segundo lugar, na partilha de valores como a justiça, a solidariedade, a liberdade e a igualdade que se considera serem instrumentos para o aperfeiçoamento individual . Não sendo uma religião, não vulgarizando dogmas, não concedendo sacramentos, a Maçonaria é sobretudo uma escola de conduta ditada por rigorosos dictames morais de bom comportamento moral e cívico que o Maçom transporta para a comunidade onde vive. Mas pautua-se, na sua organização e funcionamento por regras constitucionais – as Constituições compiladas por Anderson em 1723, os Antigos Usos e Costumes (o Poema Régius de 1390 e outros), as Constituições dos Grandes Orientes – bem como por normas litúrgicas explicitadas nos rituais dos vários graus e ritos.

Todos estes normativos constituem, o que se pode designar como o Direito Positivo da Organização Maçónica e são repositórios da Lei Maçónica, devendo como tal ser acatados por todos os maçons colocando os que os afrontam na virtualidade de serem sujeitos a sanções previstas nos Regulamentos da Obediência.

Mas a Maçonaria é sobretudo um poder espiritual, ético, que se exerce sobre a sociedade profana mediatizada pelos seus obreiros e cujas regras morais se instilam, em primeiro lugar na cerimónia de Iniciação, em que o Maçom é confrontado com uma vivência espiritual única, pela explosão da Luz e da Loja e, caso concretize as provas, perante  o labor do desbastar da pedra bruta, isto é a via sinuosa do aperfeiçoamento e adestramento individual. Vencendo as paixões, submetendo a sua vontade, realizando novos progressos na Maçonaria, como afirma o catecismo do 1° Grau.

De um ponto de vista ritual, enquanto exercício singular de vivência e interpretação do simbolismo maçónico, o contacto do Maçom com a Justiça coloca-se ainda na qualidade de recipiendário. Quando é introduzido no Templo, após ter batido ritualmente três vezes à porta do Templo é-lhe explicado que as batidas têm um significado simbólico: pedi e recebereis; procurai e encontrarás; batei e vos será aberta. A primeira batida significa que o Maçom deve estar sempre pronto a acolher um pedido baseado na Justiça, enquanto os outros se referem à verdade e à solidariedade[13]. E porquê? Porque o Maçom, como praticante da Arte Real, deve participar, de coração aberto, no exercitar da virtude da Justiça, que é um poder-dever em relação aos outros.

No 2° Grau, o Maçom é posto, mais uma vez, em presença da Justiça, quando lhe é ensinado que os deveres do Grau se colocam perante o Grande Arquitecto do Universo, consigo mesmo e com os outros. Quanto a estes últimos, o Maçom é ensinado que deve acolher na sua conduta, duas máximas morais: não fazer aos outros o que não desejaria que lhe fizessem; fazer aos outros o que esperaria que lhe fizessem. Há aqui, como nas Excrituras, um sentido de acatamento da primeira das virtudes (para lembrar RAWLS) na relação com os outros, como expressão do aperfeiçoamento moral individual[14]. Também é esse o sentido simbólico que lhe é revelado quando alertado para o significado dos sinais de Companheiro e que o esquadro formado pela mão direita no desfazer do sinal à ordem representa um desejo de justiça e equidade[15].

No 3° Grau, na cerimónia de elevação a Mestre o Maçom é colocado perante o pesado simbolismo esotérico da morte de Hiram Abif e da sua Lenda. O 3° Grau é consagrado, como os demais, ao Grande Arquitecto mas o Venerável Mestre recebe do recipiendário a promessa de depor todo e qualquer sentimento de ódio e vingança como indigno da qualidade de Maçom, o qual combate os vícios e vinga-se colocando-se acima dos ataques injustos e eximindo-se de lhes responder, olho por olho, dente por dente[16].  Como Hiram Abif o fez, mantendo-se fiel ao cumprimento dos seus deveres, mesmo com o sacrifício da própria vida.

Toda a simbologia do grau desenvolve-se à volta da morte e do sacrifício. Como lembra Rizzardo da Camino o valor de Hiram Abif não terá sido tanto o de ter ornamentado o Templo de Salomão, ou de ter assegurado a perfeita organização dos artífices e operários, mas a sua morte, em sacrifício, na defesa de um juramento[17]. Abif jurara, perante o rei de Tiro e o rei Salomão, que jamais revelaria a palavra de passe de Mestre e tombou, quando se recusou a revelá-los aos três traidores, Jubela, Jubelo e Jubelum[18] (por vezes referenciados  Sebal, Overlut e Stokin).

Os nove Mestres que foram mandados, por Salomão, em busca do corpo de Hiram prosseguem uma missão de Justiça e, quando o encontram, trazem-no a Salomão que o inuma no Santuário e o faz enterrar, com todas as honras devidas à sua condição. Mas a Justiça não se encontra totalmente realizada.  Salomão faz apelo à Lei (violada) e quando congrega os Mestres diz-lhes:

Meus Irmãos, os traidores que cometeram este assassínio não podem ficar impunes, há-que descobri-los pelo que vos declaro que as investigações devem ser levadas a cabo como todo o ardor e circunspecção possível e no caso de serem descobertos, que se não lhes faça dano algum, trazendo-os vivos para reservar-me a satisfação da Justiça [19]

 

Mas um dos vinte e sete obreiros que Salomão mandou em preseguição dos assassinos ao avistar o primeiro traidor e reconhecê-lo como pertencendo à classe dos oficiais do Templo, deixa-se tomar pelo desejo de vingança e <armando-se de um punhal que encontrou aos pés do traidor, cravou-o várias vezes em seu corpo, cortando-lhe de seguida  a cabeça>[20]. Com o seu acto desrespeitara as ordens expressas de Salomão, colocando-se sob o braço sancionatório da Lei. Quando os Mestres trazem a Salomão a cabeça do assassino e o Irmão precipitado traz o punhal ainda ensaguentado na sua mão, Salomão tem para ele as seguintes palavras: Desgraçado! Que fizeste? Não te havia dito que me reservasses o prazer da vingança? Mas sensível ao pedido dos outros Mestres que lhe rogam “Graça para ele”, Salomão perdoa ao executante, ordenando que a cabeça do traidor seja espetada numa vara de ferro e colocada numa das Portas do Templo, à vista dos obreiros. Os dois restantes assassinos são encontrados mais tarde, trazidos à presença de Salomão, esquartejados e decepadas as cabeças, seguindo destino idêntico ao primeiro traidor.

O simbolismo forte da Lenda de Hiram revela o sentido de Justiça bíblico, severa, por vezes bárbaro para os que violam a Lei, os quais encontramos repetido, frequentemente, no Antigo Testamento e na tradição judaica. A Lenda de Hiram é depois retomada no Grau 7°,  Preboste e Juíz, quando o Rei Salomão toma os 3.600 Inspectores e instituiu um Tribunal dirigido por sete prebostes e juízes, por forma a garantir que a Justiça continue a ser exercida sobre os obreiros. O ritual do Grau 7° é extremamente elucidativo da visão judaica da Justiça, enquanto representação da Lei de Israel. Por um lado, a Justiça é igual para todos e Salomão é o seu garante como já o revelara na causa das duas mulheres (Livro I, Reis 9, vers. 16-23) . Mas por outro, sendo o Direito o alicerce da Justiça, a Justiça encontra a sua fonte, a sua inspiração em Jeová.

Lemos no Salmo 11, vers. 7: Na verdade o Senhor é Justo e  ama a Justiça; os homens honestos contemplarão a sua face. Diferente é o sentido de Justiça, no Novo Testamento. Diz-se em S. Mateus, cap. 7, vers. 1-5: Não julgueis, para não serdes julgados pois conforme o juízo com que jukgardes, assim sereis julgados e com a medida que medires, assim serás medido. Porque reparas no argueiro que está na vista do teu irmão e não vês a trave que está na tua vista? Como ousas dizer ao teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro da tua vista tendo tu uma trave na tua? Hipócrita, tira primeiro a trave da tua vista, e então, verás melhor para tirar o argueiro da vista do teu irmão.    

O sentido de Justiça maçónica aproxima-se mais desta mensagem do Novo Testamento e ultrapassa o sentido judicialista da mensagem salomónica. O tratamento que o Maçom dá aos outros, desde logo aos Irmãos, deve fundar-se não na aplicação estrita da Lei  e dos Regulamentos, mas na assunção da cordialidade, da compreensão, da tolerância e, em último instância, do perdão na forma como julga os outros, esquecendo, a mor das vezes, muitas das suas próprias imperfeições.



[1] Jacqueline Russ, La Pensée Ethique Contemporaine, Presses Universitaires de France. Paris, 1995, p. 5.

[2] Platão, Republique, Colecção GF, Flammarion, Livro 4, 443,  p. 196.

[3] Rousseau, Contrato Social, 1762, Editora Martins Fontes, S. Paulo, Livro II,Cap. VI, p. 46.

[4] Kant, A Metafísica dos Costumes, Colecção GF, Flammarion, p. 17.

[5] Rawls, Uma Teoria de Justiça, 1971, Editorial Presença, Lisboa, p. 1993.

[6] Hobbes, Leviatã, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, cap. 14, p. 229.,

[7] Aranguren, José Luís, Ética y política, Editorial Biblioteca Nueva. Madrid, 1999, p. 21.

[8] Aranguren, José Luís, Ética y política, ibidem, p. 21.

[9] Bíblia Sagrada, Difusora Bíblica, Lisboa, 2001.

[10] É evidente já aqui a percepção da Justiça como reflexo da Lei Divina.

[11] Isto é aplicava a Sua Lei.

[12] Luis Nandin de Carvalho, Teoria e Prática da Maçonaria, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995, p. 48.

[13] Rizzardo da Camino, Rito escocês antigo e aceito – Graus 1° a 33° - Editora Madras, S. Paulo, 1997, p. 43.

[14] Ritual de Companheiro, Grande Loja Regular de Portugal, p. 36.

[15] Rizzardo da Camino, Rito escocês, ibidem, p. 79

[16] Rizzardo da Camino, Rito escocês, ibidem, p. 79.

[17] Rizzardo da Camino, Rito escocês, ibidem, p. 92.

[18] Christopher Knight & Robert Lomas, The Hiram Key, Arrow Books, Londres, p. 21 e 179.

[19] Rizzardo da Camino, Rito escocês, ibidem, p. 95.

[20] Rizzardo da Camino, ibidem, p. 95



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