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MONOGRAFIAS MAÇÔNICASpelo Ven.Irmão WILLIAM ALMEIDA DE CARVALHO 33ORFEU, ORFISMO E MISTÉRIOS ÓRFICOS
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Orfeu (descendo do morro para a cidade [o inferno]) : “Não sou daqui, sou do morro. Sou o músico do morro.
No morro sou conhecido – sou a vida do morro. Eurídice morreu. Desci à
cidade para buscar Eurídice, a mulher do meu coração.
Há muitos dias busco Eurídice.
Todo mundo canta, todo mundo
bebe: ninguém sabe onde Eurídice
está. Eu quero Eurídice, a minha noiva
morta, a que morreu por amor de mim. Sem Eurídice não
posso viver. Sem Eurídice não há Orfeu, não há música, não há
nada. O morro parou, tudo se esqueceu. O que resta de vida é a esperança de
Orfeu ver Eurídice nem que seja pela última vez”. Orfeu da Conceição – Vinícius
de Moraes I - Introdução
O mito de Orfeu exerce uma atração fascinante no imaginário da cultura
ocidental, tanto no passado como no presente. A primeira ópera conservada até
hoje em sua totalidade é o L’Orfeo
de Cláudio Montiverdi, estreada em Mântua em 1607. O primeiro balé alemão
– Orpheus und Eurydice - foi criado
por Heinrich Schütz em 1638. Glück, no século XVIII, criou Orfeo ed Eurídice. No século XIX, Offenbach, não nos legou
somente Os Contos de Hoffmann, mas
também um Orfeu no Inferno. Orfeu foi
tema para os seguintes musicistas: Liszt, Benda, Paer, Milhaud, Malipiero,
Casella, Krenek, Birtwistle e Stravinsky. O cinema, no século XX,
apresentou-nos os dois Orfeus (Orpheus
[1949] e Le Testament d’Orphée [1959])
de Jean Cocteau e o carnavalesco Orfeu
Negro (1959) de Marcel Camus, premiado com a Palma de Ouro em Cannes e o
Oscar em Hollywood, baseado na peça de Vinícius de Moraes - Orfeu da Conceição, testemunhando a modernidade do tema.
Folheando-se os jornais hoje (maio/1999), depara-se com o último filme de Cacá
Diegues - Orfeu - e o último livro de
Salman ”Versos Satânicos” Rushdie
- O Chão Que Ela Pisa - que, segundo
a crítica, é um mergulho no universo pop e traz à tona o mito de Orfeu. Já
que se passou para a literatura, não se pode deixar de citar o maior poeta lírico
grego – Píndaro; Platão na República,
no Górgias e no Banquete; as Geórgicas de
Virgílio (principalmente o Livro IV); o Paradise
Lost (Canto VII) e o L’Allegro (145)
de Milton; as Pastorals de Pope; o romântico
Novalis e o nosso brasileiríssimo e monumental poema barroco (no dizer de
Murilo Mendes) de Jorge de Lima: Invenção
de Orfeu (1952). Na pintura, o poeta Guillaume Apollinaire, em 1912, criou
um termo - cubismo órfico - que influenciou Robert Delaunay, Fernand Léger,
Francis Picabia e Marcel Duchamp.
O porquê desta orfeumania é o que se tentará enfocar neste artigo.
II - Lendas sobre Orfeu Numerosas fontes históricas relatam a existência dos mitos
órficos. Tudo leva a crer que não era conhecido de Homero (antes de 700 a. C.)
mas, já no século VI, aparece em algumas tradições. O primeiro escritor
grego a fazer menção ao “célebre Orfeu” foi Ibykos em meados do século
VI. a. C. A lenda de Orfeu coloca-o como um dos principais poetas e músicos da
época heróica, ao lado de Homero e Hesíodo. Determinou a existência de uma religião especial – o
orfismo – e de uma seita – os órficos – que se expandiu por todo o mundo
grego e a Itália meridional. Encontram-se alusões ao mito em Píndaro, Ésquilo,
Eurípedes, Empédocles etc. É, contudo, o já citado Platão que o entroniza
na República em plena época clássica
(século IV a. C.). Ele e os neo-platônicos influenciaram vigorosamente o
pensamento cristão. A humanidade herdou três obras comple- tas, numerosos
fragmentos e uma longa lista de obras, efetuadas pelo lexicógrafo grego Suidas,
atribuídas ao próprio Orfeu.
Orfeu, do grego OrjeuV, é um herói
lendário grego dos tempos antigos com extrema habilidade na música, no canto e
na poesia e que se tornou o patrono de um movimento religioso ritualizado por um
corpus de escritos sagrados que teria
sido composto pelo próprio. Remanescem dúvidas se Orfeu teria sido um
personagem histórico. A lenda, contudo, reza que teria nascido na Trácia e era
filho de u’a Musa (provavelmente Calíope, patrona da poesia épica e a mais
importante das musas) e Eagros, rei da Trácia. Outra versão, apresenta-o como
filho do próprio Apolo.
Orfeu é considerado como o maior músico da antigüidade, não só pela
música como pelo canto. Todos os poetas antigos celebraram sua lira e sua cítara,
pois, até mesmo esta, teria sido inventada ou aperfeiçoada por ele, pois
aumentou-lhe o número de cordas, de sete para nove, numa homenagem às Nove
Musas. Seus
acordes eram tão melodiosos que os homens e os animais quedavam paralisados
para o escutar. Os animais ferozes deitavam-se a seus pés como cordeiros; as árvores
vergavam para melhor escutá-lo; os homens mais coléricos sentiam-se penetrados
de ternura e bondade. Educador da humanidade, conduziu os trácios da
selvageria para a civilização. Iniciado nos ‘mistérios’, completou sua
formação religiosa e filosófica viajando pelo mundo. Ao retornar do Egito,
divulgou na Hélade a idéia da expiação
das faltas e dos crimes, bem como os cultos de Dioniso e os mistérios órficos,
prometendo, desde logo, a imortalidade a quem neles se iniciasse.
Juntou-se à expedição dos Argonautas, assim chamados por causa do
navio Argos no qual embarcaram para a
Cólquida em busca do Tosão de Ouro. Este célebre navio transportou a fina
flor da mocidade grega, cerca de 55 heróis, dos quais cita-se: Jasão, promotor
e chefe da empresa, Héracles (que participou só no começo da missão), Argos,
Castor e Pólux, Deucalião, Glauco, Laertes, pai de Ulisses, Oileu,
pai de Ajax, Peleu, pai de Aquiles, o nosso poeta Orfeu e muitos outros.
Teve participação expressiva, pois salvou-lhes a vida em diversas
oportunidades: seja acalmando o mar encapelado; seja dando cadência, com a sua
música, aos remadores; seja entorpecendo o dragão da Cólquida, o guardião do
Tosão de Ouro, ao som de sua cítara; seja recobrindo a música maléfica das
Sereias com o som de seu instrumento. Passaram pelo Helesponto, pelo Ponto
Euxino, pelas Ciâneas (recifes móveis) também chamadas de Simplégades, por
Cila e Caribdes etc. No tocante as Simplégades, seria interessante realcionar
seu simbolismo com os ritos de iniciação. Spencer
diz que “as Sympleglades, eram duas
rochas em luta, na entrada do Mar Negro, e por entre as quais Jasão e os
Argonautas tinham de passar em seu barco. As Sympleglades simbolizam a passagem para um outro mundo e têm uma
tripla significação: elas representam o guardião do umbral; representam o
terror do umbral e a ameaça de deixar a familiar condição mundana; quando a
passagem é realizada, elas representam a união dos opostos. Quando o homem deseja tranferir-se deste mundo para
outro, ele deve passar através de um intervalo sem dimensão e sem
tempo, que divide duas forças relacionadas porém contrárias. No
momento real da passagem, o herói abraça amabas as forças e deste modo anula
os opostos. Nesse preciso momento ele se encontra no outro mundo” (Spenser,
pg.31). Mircea Eliade também dedica grandes parágrafos ao simbolismo iniciático
das Simplégades (Eliade, 1975, pg. 108).
Ao regressar da expedição dos Argonautas, casou-se com a ninfa Eurídice
a quem amava perdidamente. Acontece que no dia de suas núpcias, o apicultor
Aristeu tentou violar a esposa de Orfeu. Eurídice, ao fugir de seu perseguidor,
pisou uma serpente que a picou, causando-lhe a morte. Possuído por um desgosto
inconsolável, o poeta deixa de cantar e tocar e permanece em silêncio soturno
pela morte da esposa. Resolveu, então, descer às profundezas do Hades, para
trazê-la de volta ao mundo dos vivos. Orfeu desce aos infernos, nos versos
imortais de Virgílio e, com sua cítara e sua voz divina, encantou de tal modo
o mundo plutônico que a roda de Exíon parou de girar; o rochedo de Sísifo
deixou de oscilar; Tântalo esqueceu a fome
e a sede e as Danaides descansaram de sua faina eterna de encher os tonéis sem
fundo. Às margens do Styx, tange de tal modo sua cítara que Caronte e Cérbero
deixam-no atravessar o rio. Comovidos com tamanha prova de amor, Plutão e Perséfone
concordaram em devolver-lhe a esposa. Impuseram-lhe, contudo, uma condição
penosa: ele seguiria à frente e ela lhe acompanharia os passos. Enquanto
caminhassem pelas trevas infernais, acontecesse o que fosse, Orfeu não
poderia olhar para trás, até que o casal
transpusesse os limites do império das sombras. Orfeu aceita a imposição
e inicia a sua peregrinação. Estava quase alcançando a Luz quando uma dúvida
lhe assalta o cérebro: e se tudo não fosse uma enganação dos deuses? E se
sua amada não estivesse atrás dele? Acutilado pela incerteza, olhou para trás,
transgredindo a ordem dos deuses. Ao voltar-se, viu Eurídice, esvaindo-se para
sempre, “morrendo pela segunda vez...” Tentou ainda retornar, mas o
barqueiro Caronte foi implacável na sua recusa.
Inconsolável, tomado de amor pela sua musa, o vate passa a repelir todas
as mulheres da Trácia. Por causa disso, uma vertente da lenda rezava que Orfeu
foi estraçalhado pelas enfurecidas mulheres do seu torrão. A outra vertente,
afirmava que tinha sido esquartejado pelas Mênades
por ter abandonado o culto de Dioniso pelo de Apolo. Sintomático é que em
ambas as versões, nota-se uma certa similaridade com o esquartejamento de Osíris
e a junção dos pedaços por Ísis no Antigo Egito. É o tema da degradação
do ovo original.
Sua cabeça foi lançada ao rio Hebro, cantando e recitando em versos órficos,
o nome de sua amada. Desgostosos com esse crime, os deuses resolveram castigar o
país com uma grande peste. Consultado o oráculo de como acalmar a ira divina,
foi dito que o flagelo só terminaria quando se encontrasse a cabeça de Orfeu e
lhe fossem prestadas honras divinas. Após longas buscas, um pescador encontrou
a cabeça na embocadura do rio Meles, na Jônia, onde foi erguido um templo em
homenagem a Orfeu, cuja entrada era proibida às mulheres. Se a lira do poeta
foi parar na ilha de Lesbos, berço principal da lírica grega, pespegaram-na também no firmamento onde se tornou a
Constelação da Lyra, que tem Vega como uma das estrelas de primeira grandeza.
Orfeu dirigiu-se ao Hades para buscar Eurídice morta. E aqui convém
salientar que pela cultura cristã, imagina-se o Hades, o mundo inferior, como o
inferno. No orfismo, a topografia do Hades está divida em três regiões: i) o Tártaro,
a parte mais abissal, profunda, ou seja, infernal, pois os castigos eram cruéis
e violentos; ii) o Érebo, com
castigos não tão horrendos como o Tártaro
e iii) os Campos Elísios, destinados
àqueles que, tendo passado pelos horrores dos dois primeiros, aguardavam o
retorno.
Ao descer à mansão do Hades,
Orfeu teria trazido Eurídice de volta ao mundo dos vivos se não tivesse olhado
para trás, ou seja, mostrou estar ainda, preso ao passado, à matéria,
enfim, a Eurídice. “Um órfico autêntico, segundo se verá mais adiante,
jamais ‘retorna’. Desapega-se, por completo, do viscoso do concreto e parte
para não mais regressar. Certamente o citaredo da Trácia ainda não estava
preparado para a junção harmônica e definitiva com sua anima
Eurídice. Seu despedaçamento pelas Mênades, supremo rito iniciático, o
comprova. Como Héracles, que, apesar de tantos ritos iniciáticos e até mesmo
uma catábase [ida] ao mundo das sombras, somente escalou o luminoso Olimpo após
uma morte violenta numa fogueira no monte Eta. Orfeu olhou para
trás, transgredindo o tabu das direções.
Estas, bem como os lados e os pontos cardeais, possuíam, nas culturas antigas,
um simbolismo muito rico” (Brandão, vol.II, pg. 144).
Convém comparar essa parte do mito com o Gênesis (19, 17-26) quando os
dois anjos recomendam a Lot que não
olhasse para trás quando fugisse com sua família da destruição de Sodoma
e Gomorra. Ao fugirem, a esposa de Lot olhou
para trás e foi transformada numa estátua de sal. Este olhar para trás dela representa a volta ao passado, o apego a uma
cidade do pecado. A desobediência, tanto a Javé como a Plutão, causa a desgraça
do infiel.
Na macumba, após o despacho na encruzilhada, quem elabora nunca deve olhar
para trás. As culturas tradicionais sempre privilegiaram o silêncio e o
interdito do olhar para trás: seja o
agricultor ao plantar; a mulher ao fiar o tecido; o coveiro ao abrir a
sepultura; os desfilantes ao acompanhar o cortejo fúnebre.
Com a harmonia (em grego,
harmonia significa junção das partes)
perdida ou rompida, Orfeu não mais podia tanger a lira e o seu canto perdeu a
magia. Perdeu tudo: Eurídice, a música, o canto, ele mesmo.
O despedaçamento de Orfeu está ligado a ritos antiquíssimos, pois como
se sabe, o neófito ou iniciado, despedaçava um animal e o comia, para
significar seu renascimento em Dioniso ou algum deus tribal. O rito frenético
de Dioniso, executado pelas bacantes, reflete a originalidade do deus no panteón
bem comportado da religião estatal grega. A participação das bacantes
demonstrava que Dioniso era um deus das mulheres. Tanto assim que uma delegação
de mulheres atenienses, a cada três anos, se dirigia ao campo para serem possuídas
pelo charme e a ‘folia’ do deus, longe das cidades, corriam e dançavam ao
som de uma flauta, sobre as montanhas e as florestas.
A cabeça de Orfeu sendo lançada ao rio Hebro, também tem um
significado lapidar. A cabeça sempre foi considerada, nas mais diversas
culturas, como uma das partes mais nobres e sagradas do ser humano, pois
hospedava a alma. Possuir a cabeça de
um inimigo, quanto maior a hierarquia maior a honra; era um troféu digno de um
rei ou de um chefe tribal. Os deuses somente deram descanso aos mortais depois que
foi encontrada a cabeça de Orfeu e lhe foram prestadas honras fúnebres. Mesmo decapitada, a cabeça continuava a viver,
pois é o símbolo da voz, do verbo, da imortalidade. III – Orfismo
Possui-se hoje uma visão razoável do orfismo através dos diversos
escritos, principalmente os textos de Platão e Virgílio que o integraram no
seio de suas obras. O orfismo é um movimento religioso complexo onde se
detectam influências dionisíacas, pitagóricas, egípcias, apolíneas e
obviamente orientais. O orfismo oscila entre Dioniso, que sempre desejou
romper a camisa-de-força da religião tradicional da pólis grega, e Apolo, que corrigia os excessos e os desvairios
dionisíacos. Esta aproximação que Orfeu faz dos dois deuses antagônicos tem
um certo sentido: segundo Eliade, o espírito grego exprime por ela sua esperança
de encontrar uma solução às crises desencadeadas pela ruína dos valores das
religiões homéricas. Rejeita daquele os ritos, nos quais os iniciados
despedaçavam a vítima viva e ainda palpitante, e a consumação imediata da
carne e do sangue do animal, pois eram radicalmente vegetarianos. A antropologia
órfica tem como consequência o crime dos Titãs, contra Zagreu, o primeiro
Dioniso, a mando da ciumenta Hera. A mitologia conta que Dioniso-Zagreu era
filho de Zeus com Sêmele, uma mortal que, aconselhada pela deusa esposa Hera,
pediu a Zeus que o queria ver com os olhos mortais, o que era um verdadeiro suicídio.
Ao se apresentar a Zeus, a mortal não pôde suportá-lo em toda a sua radiante
epifania. Morreu carbonizada e o feto foi recolhido por Zeus e agasalhado em sua
coxa até o nascimento. Mais tarde, os Titãs, ainda a mando de Hera, após
raptarem Zagreu, mataram-no e cozinharam-no num caldeirão. Em seguida, o
devoraram-no. Zeus, possesso, fulminou os Titãs, transformando-os em cinzas.
Dessas cinzas, nasceram os homens, com sua dupla natureza: o mal advindo de sua
natureza titânica e o bem, representado pelo menino Dioniso-Zagreu que os Titãs
tinham devorado. A chispa do divino, que o homem carrega dentro de si, advém
pois de Dioniso, deus da fertilidade e também da morte. Na religião dionisíaca,
inexiste, contudo, esperança escatológica, enquanto o orfismo é
essencialmente soteriológico. Além do mais, o êxtase dionisíaco
manifestava-se de modo coletivo tanto
quanto o orfismo é, por princípio, individual.
De Apolo, herdou uma componente da catarsis, ou
seja da purificação, tão praticada no oráculo apolíneo de Delfos, mas era
radicalmente contra a weltanschauung
de Apolo. Este comandou a religião estatal com mão-de-ferro, freando qualquer
inovação que significasse um rompimento com o métron, tão conhecidos na lição apolínea por excelência:
‘conhece-te a ti mesmo’ e ‘nada em demasia’. A inteligência, a ciência
e a sabedoria são consideradas pelos epígonos de Apolo como modelos divinos. A
serenidade apolínea tornou-se, para o homem grego, o emblema da perfeição. A
divergência residia até mesmo na catarsis, enquanto em Apolo, esta visava
prioritariamente a purificar o homicídio. Os órficos purificavam-se nesta e na
outra vida, visando libertar-se do ciclo das existências. A religião apolínea
era o bem viver; a órfica, o bem morrer. Os órficos
substituíram a ‘folia’ dionisíaca pela catarsis apolínea. Através da
prece e da oferenda, a purificação – catarsis – é um dos ritos principais
das religiões antigas. Tudo que é impuro provoca a repulsão dos deuses e, por
impuro, entende-se tanto a alma quanto o corpo. Convém notar que, por purificação,
entende-se tanto a individual como a coletiva. Na antigüidade grega, quando se
cometia um crime, o castigo recaía não só sobre o criminoso como sobre todo o
seu clã. Assim, uma pretensa purificação de um crime, tinha que ser não só
individual como coletiva. Ao contrário dos cultos dionisíacos, os apolíneos
eram públicos, pois rejeitavam os mistérios das iniciações e dos ritos
secretos. Por sinal, conhece-se muito pouco destes ritos secretos e destas
iniciações órficas. Eliade nota uma semelhança entre os ritos apolíneos e
os xamânicos, pois ambos procuram o conhecimento, a sabedoria e a exaltação
do espírito, ao contrário das histerias (no sentido grego) e das possessões
dionisíacas. Os órficos resolveram o problema da culpa de forma original na
cultura grega: a culpa é sempre de responsabilidade individual e por ela se
paga aqui; quem não conseguiu purgar-se nesta vida, pagará por suas faltas no
além e nas outras reencarnações até a catarsis final. A semelhança entre o orfismo e o pitagorismo, nos
aspectos religiosos, é por demais sintomática: o dualismo corpo-alma, a crença
na imortalidade da alma, a metempsicose, a punição no Hades, a glorificação
final da psiqué nos Campos Elíseos,
o vegetarianismo, o ascetismo e a importância das purificações. Por outro
lado, o orfismo era menos elitista do que o pitagorismo, menos esotérico e não
se imiscuia em política. Orfeu é essencialmente um
reformador. O orfismo
quebra com a religião homérica, principalmente no tocante à sua teogonia.
Salienta-se que a teogonia de Homero foi transmitida pelos rapsodos gregos.
Sumariamente, a teogonia órfica afirma o seguinte: na origem estava Cronos (o
Tempo) e dele saíram o Éter e o Caos que geraram o Ovo Cósmico, um ovo de
prata imenso (daí a proibição de se comerem ovos). Desse Ovo surgiu o deus
andrógino Fanes, mais tarde chamado de Eros. Após seu nascimento, a parte
superior do ovo tornou-se o céu e a parte inferior, a terra. Fanes criou a lua
e o sol, o outros deuses e o mundo. Zeus, contudo, engole Fanes e toda a criação.
Houve a produção de um mundo novo, tornando-se, a partir daí, o criador único.
Um papiro, descoberto em 1962, revela uma teogonia ainda mais radical: um verso,
atribuído a Orfeu, proclama que “Zeus é o começo, o meio e o fim de todas
as coisas”. A seguir, Zeus criou um numeroso panteão no qual é preciso
salientar Dioniso-Zagreus que terá realce fundamental no culto do orfismo.
É importante aqui salientar o carácter monoteísta dessa teogonia que
representa uma ruptura importante com os mitos olímpicos advindos dos rapsodos
homéricos. O orfismo propugna por uma noção de um deus criador, soberano,
simbolizando a vida universal. Contudo, o rompimento mais radical com o mito homérico
é na parte escatológica, ou seja, na ciência dos fins últimos do homem,
naquilo que deverá seguir à vida terrestre. A descida ao Hades, simboliza a
vida após a morte. A concepção órfica da imortalidade advém de um crime
primordial: a alma está enterrada no corpo como se fosse um túmulo (soma-sema, que significa em grego corpo-túmulo). Como conseqüência,
a existência encarnada se assemelha mais a uma morte e o falecimento constitui
o começo da verdadeira vida. Esta verdadeira ‘vida’ não é obtida
automaticamente; a alma será julgada segundo as suas faltas e os seus méritos.
Após um certo período, ela reencarna. A influência egípcia – julgamento de
Osíris e reencarnação – é insofismável no orfismo. Nessa via crucis de reencarnação em reencarnação, até mesmo em corpo
de animais, a alma vai se purificando. Nesses intervalos reincarnacionistas, a
alma chega a demorar uns 1000 anos no castigo do inferno, onde sofre um ciclo de
pesadas penas. Quando completamente purificada, sai desse ciclo de gerações
para reinar entre os heróis. O destino, obviamente, não será o mesmo para os
iniciados órficos e os profanos. O mortal comum profano deverá percorrer dez
vezes o ciclo antes de escapar.
São outro artefato importantíssimo no orfismo. As lamelas órficas ou orfo-pita-góricas. Lamelas são pequenas lâminas ou placas de ouro, descobertas na Itália
meridional e na Ilha de Creta, e em túmulos órficos. São, também, todas
marcadas com o sinal secreto Y, até hoje um mistério. Delgadas e elegantes,
enroladas sobre si mesmas, eram depositadas em pequenas placas hexagonais.
Estas, presas a correntes de ouro, eram colocadas no pescoço dos iniciados,
como talismãs, à maneira de passaporte para a eternidade. Numa das lamelas
encontradas, estão incrustados versos de aconselhamento à alma do morto para
sua viagem em direção ao Hades. Em lá chegando, deve escolher entre um caminho da
direita e um da esquerda. “À esquerda da morada do Hades, tu encontrarás o
Lago da Memória, e os guardiões estarão lá. Diga-lhes... eu sou o menino da
Terra e do Céu estrelado, mas estou morrendo de sede. Dá-me rapidamente a água
fresca que flue do Lago da Memória”. Para a alma que deve retornar a terra
para reencarnar-se, essa água do Lethes tem por função não esquecer sua
existência terrestre mas eclipsar a recordação do mundo pós-morte. O orfismo
assim reverte a função da água do Esquecimento pela nova doutrina da
transmigração. O esquecimento não simbolisa mais a morte, mas o retorno à
vida. A alma que teve a imprudência de beber na fonte do Lethes reencarna e será
novamente projetada no ciclo do devir.
Para aquelas almas que não precisam mais se reencarnar, é aconselhado
evitar a água do Lago da Memória e passar ao caminho da direita. E esta
escrito numa das lamelas: “Venho de uma comunidade de puros, ó puro soberano
dos Infernos”. Ao que Persófone replica: “Saúdo-te, toma o caminho da
direita em direção aos prados sagrados e aos bosques de Perséfone”.
A sede da alma, comum a tantas culturas, configura não apenas o refrigério,
pelo longo caminhar da mesma em direção a outra vida, mas sobretudo, simboliza
a ressurreição, no sentido da passagem definitiva para um mundo melhor. Se,
para os gregos “os mortos são aqueles que perderam a memória”, o
esquecimento para os órficos não mais configura a morte, mas o retorno à
vida. IV – Conclusão
Orfeu não morreu com a Grécia antiga. A sua figura continuou a ser
reinterpretada pelos teólogos, tanto judeus quanto cristãos. Nos afrescos das catacumbas
romanas, encontram-se imagens de Orfeu, tangendo sua lira no meio de animais
simbólicamente cristãos: carneiros, ovelhas, cachorros, pombas. Noutros, encontram-se duas ovelhas: uma
simbolizando Orfeu e outra, o Cristo. Nos mosaicos do mausoléu de Gala Placídia,
em Ravena, é representado como Bom-Pastor. Uma antiga cena de crucificação
chega mesmo a chamar Cristo de “Orfeu báquico”.
A semelhança dos simbolismos são flagrantes: o crime primordial dos Titãs
e o pecado original de Adão e Eva, a consumação do corpo do deus cristão e
do deus grego, Cristo como filho de Deus assim como Orfeu era filho de Apolo, são
pontos comuns entre as duas doutrinas religiosas, numa visão simplista.
Para os filósofos da Renascença até Pope, para os poetas do seicento, passando pelos hermetistas até os dias atuais, o Mundo
Ocidental teima em não esquecer Orfeu. Se pouco restou dos mistérios órficos,
a figura de Orfeu tem cadeira cativa no inconsciente coletivo de nosso mundo. V
-Bibliografia
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