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MONOGRAFIAS MAÇÔNICASpelo Ven.Irmão WILLIAM ALMEIDA DE CARVALHO 33ASCENSÃO E QUEDA DO DEUS MITRA
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“Se o cristianismo tivesse sido
detido em seu crescimento
por alguma doença mortal,
o mundo teria sido mitraísta.”
Ernest
Renan, Marc Aurèle
Este estudo buscará enfocar o tema Mitra em cinco partes: a) as origens
antigas do Deus; b) o culto e a liturgia do mitraísmo; c) a derrota frente ao
cristianismo; d) resquícios mitraícos e sua influência sobre a maçonaria e
e) como seria um mundo moderno mitraíco à guisa de conclusão. Utilizamos,
para este trabalho, enciclopédias e diversos textos da Internet, principalmente
o texto de Jean-Louis dB no “La parole circule”. I – As Origens Antigas do Deus Mitra.
Existe muita controvérsia sobre a etimologia de Mitra. Na Índia védica,
Mitra significava ‘amigo’, no persa avéstico era traduzido como
‘contrato’. Esta última definição é a que prevalece nos nossos dias,
sendo pois Mitra a personificação do contrato. Segundo os etimologistas,
Mit(h)tra é composto de um sufixo instrumental – “tra” – que significa
instrumento de trabalho e de um prefixo “mi” que é encontrado em todas as línguas
indo-européias sob diferentes raízes. “Mei” pode significar ainda
“lugar, encontro”. Em sânscrito “mitram” significa “amigo”. Mitra
significando, pois, ‘contrato’ e ‘amigo’ não se opõem realmente, visto
que não existe amizade sem um engajamento mútuo. Não se fala em ‘pacto de
amizade’? Mitra se encontra sob diferentes ortografias: Mihr, Meher, Meitros,
etc. Os
trabalhos clássicos de Mircea Eliade e principalmente os de Georges Dumézil
sobre a Índia védica demonstram uma
estrutura fundamental da sociedade e da ideologia das diferentes sociedades
indo-européias. A sociedade é dividida em três classes: sacerdotes,
guerreiros e agricultores que correspondem a uma ideologia religiosa
trifuncional: a função da soberania mágica, da sacrificadora e da jurídica
(Varuna-Mitra, Rômulo-Júpiter e Odin); a função dos deuses da força
guerreira (Indra, o etrusco Lucumão-Marte e Thor) e, finalmente, a das
divindades da fecundidade e da prosperidade econômica (os gêmeos Nâsatya ou
os Asvins, Tatius [e os sabinos]-Quirino e Freyr). Encontra-se o Deus Mitra no Panteão Védico da Índia
desde 1380 a. C. Este Proto-Mitra estaria associado a Varuna e forma uma
dualidade antitética e complementar. Mitra seria a face jurídico-sacerdotal,
conciliadora, luminosa, próxima da terra e dos homens enquanto Varuna seria o
aspecto mágico violento, terrível e tenebroso. Mitra torna-se, pois, a
garantia do compromisso, a força deliberante, enquanto Varuna o respeito ao bom
direito pela força atuante. A antítese Mitra-Varuna encontra-se também em
Roma com a oposição dos dois primeiros reis: Rómulo (Varuna-Júpiter),
semi-deus violento e Tatius (ou Numa-Mitra), ponderado e sábio, instituidor das
questões sagradas e das leis, ligado igualmente aos deuses da fertilidade e do
solo. Mitra é o Deus soberano sob seu aspecto racional, claro, regrado, calmo,
benevolente, sacerdotal. Seu papel é secundário quando esta isolado de Varuna,
mas compartilha com este todos os atributos da soberania. O Sol é seu olho,
nada lhe escapa. A conclusão de um acordo se fará através de um sacrifício
ao Deus Mitra, mas um sacrifício incruento, pelo menos no início, pois, mais
tarde, terminará por aceitar sacrifícios sangrentos. Esta evolução é
metaforizada pelo papel de Mitra na história dos Deuses, pois terminará por
ser associado à morte do Deus Soma. Na origem, Mitra recusa-se a participar da
morte ritual, sendo amigo de todos, pois prestará sua ajuda para, no final, ser
um ator ativo na morte ritual.
O Mitra avéstico, encontrado na religião iraniana, é o Mitra mais
conhecido e divulgado e precede o monoteísmo zoroastriano. A influência da
antiga religião iraniana para a formação religiosa do Ocidente é bastante
significativa: o tempo linear, a articulação dos diversos sistemas dualistas
– sejam cósmicos, éticos ou religiosos -, o mito do Salvador; a elaboração
de uma escatologia ‘otimista’ que proclama o triunfo do Bem sobre o Mal; a
salvação universal; a doutrina da ressurreição dos corpos; certos mitos gnósticos;
a mitologia dos Magos etc.
Na religião dos aquemênidas, a oposição entre Aúra-Masda (o Bem) e
os daêvas (o Mal) sempre foi
presente, já que na Índia védica aconteceu o contrário: no conflito entre os
devas e os asura,
aqueles foram vencedores, pois tornaram-se os verdadeiros deuses, ao triunfarem
sobre as divindades mais arcaicas - os asura
- que nos textos védicos são considerados figuras ‘demoníacas’. Processo
similar, ainda que com sinal trocado, aconteceu no Irã: os antigos deuses, os daêvas,
foram demonizados (ai, dos perdedores!). Eliade argumenta que “pode-se
determinar em que sentido se efetuou essa transformação: foram sobretudo os
deuses de função guerreira – Indra, Saurva, Vayu – que se tornaram daêvas.
Nenhum dos deuses asura foi
‘demonizado’. Aquele que, no Irã, correspondia ao grande asura
proto-indiano, Varuna, torna-se Aúra-Masda”. Aqui,
a antítese Varuna-Mitra é substituída pelo duo Mitra-Aúra sendo que a função
continua a mesma. Mitra é um deus da luz, da aurora, guardião que socorre as
criaturas, onisciente e vitorioso. Aúra, tornando-se progressivamente Aúra-Masda,
transforma, também, a significação de Mitra, metamorfoseando-o paulatinamente
num deus guerreiro. Mitra continua deus do contrato e do acordo e assegura uma
ligação entre os diferentes níveis da sociedade da qual é garantidor da
ordem, representada pelo gado e a fecundidade. Interessante notar que aquela
trilogia de Dumézil – sacerdote, guerreiro e agricultor – começa a ser
baralhada. Este Mitra avéstico, mais do que o védico, beneficiará os sacrifícios,
notadamente os do Touro. Seu papel de deus guerreiro, contudo, crescerá à
medida que Aúra-Masda fortifica e torna dominante o seu lugar no Panteão dos
Deuses. Tal ‘evolução’ é lógica, pois como deus garantidor da ordem,
sempre estará ao serviço do respeito da lei e do contrato para aqueles que o
reverenciam. Com o tempo metamorfoseia-se num deus violento e cruel. É um deus
solar com mil olhos e orelhas e, como vimos, um deus da fertilidade dos campos e
dos rebanhos. Atua, como Hermes, no papel de psicopompo, ou seja, condutor das
almas dos mortos, pois como senhor dos Céus conduz as almas até o Paraíso. Mitra
foi adorados por quase todos os soberanos persas: Ciro o reverenciava; sob Dario
houve um breve eclipse, pois este, segundo alguns especialistas, era partidário
de Zoroastro; e reaparece com Artaxerxes. Na cerimonial da realeza persa, o dia
de Mitrakana era o único dia em que o rei persa tinha o direito de
embriagar-se, numa clara analogia com a morte védica. Mitra
retorna ao primeiro plano como deus do sol, dos juramentos e dos contratos, sob
a influência dos Magos. Estes foram uma classe de sacerdotes dos antigos medas
com um papel sacrificial importante e que entre os gregos antigos gozavam de uma
reputação de serem depositários de uma sabedoria esotérica. No Panteão dos
Deuses avésticos, Mitra seria filho de Anihata ou Anahita, a gênia feminina do
fogo, uma espécie de Virgem Imaculada, Mãe de Deus. É a única figura
feminina associada a Mitra, pois este permanecerá celibatário por toda a vida,
exigindo de seus admiradores a prática do controle de si, a renúncia e a
resistência a toda forma de sensualidade. Vale salientar que o maior Mithraeum
(templo) construído em Kangavar na Pérsia Ocidental era dedicado a esta deusa.
Segundo reza o Mihr Yasht, o extenso
hino em honra a Mitra da saga religiosa persa, a história de Mitra é a
seguinte: após ter sido promovido ao panteão dos Grandes Deuses, Aúra-Masda
mandou construir-lhe uma mansão no cimo do Monte Hara, ou seja, no mundo
espiritual, além da abóbada celeste. Postou-se aí como o protetor de todas as
criaturas e não era adorado como todos os outros deuses menores com preces
rotineiras. Aúra Masda consagrou Haoma como sacerdote de Mitra que o adorava e
lhe oferecia sacrifícios. Aúra Masda cria e prescreve o rito próprio ao culto
de Mitra no paraíso. Mitra, assim, retorna à terra para o combate contra os daêvas
sem, contudo, conseguir vencê-los. Somente quando Mitra se une a Aúra Masda o
destino dos daêvas será selado.
Mitra será, a partir daí, adorado como a luz que ilumina todo o mundo. No
tocante aos babilônios, estes incorporarão o Deus Mitra no seu Panteão e, em
troca, introduzirão, na religião persa, seu culto solar, tendo a astrologia
como um dos seus pontos mais fortes. Convém salientar que a cultura judaica
sofrerá uma influência marcante do dualismo zoroastriano a partir do cativeiro
em 597 a.C. No judaísmo primordial, Iavé era concebido como o único criador
do Mundo e do Universo, ou seja a totalidade absoluta do real, contendo
inclusive o mal. O dualismo Iavé - HaShatan advém de uma crise espiritual que
se seguiu ao cativeiro babilônico, personificando aspectos negativos da vida,
sob a forma de Satã, que se tornará progressivamente também eterno. Satã
seria, então, o fruto de uma cissão da imagem arcaica de Iavé combinado com
as doutrinas dualistas iranianas. Esta tradição impactará fortemente o
cristianismo nascente.
O Mitra irano-helenístico tem a sua gênese com as conquistas de Alexandre
e a queda do império persa durante o ano de 330 a. C., pois Alexandre e 10.000
de seus soldados macedônios se casam com mulheres persas e mais, dentro do
ritual persa. Sabe-se que alguns destes macedônios e seus filhos, iniciados
pelas mães persas, introduziram o culto de Mitra na Macedônia e na Grécia. É
deveras conhecido que a adoração deste Deus Mitra, advindo do inimigo persa,
nunca obteve uma grande popularidade na Grécia, apesar de continuar a manter a
influência junto à aristocracia meda e iraniana.
Tanto assim que o nome Mitrídate (dado a Mitra) é encontrado em diversos reis
partos, do Bósforo e do Ponto Euxino. A arqueologia tem descoberto diversos
templos – Mitreas – na Armênia. Apesar da pouca influência junto ao povo
grego, a religião iraniana entrou num vasto movimento sincrético junto à
cultura helênica. Mitra era adorado em todo o império de Alexandre e os Magos
continuavam a ser os sacerdotes sacrificadores. O culto repousava sobre uma
cronologia escatológica de 7.000 anos, cada milênio sendo governado por um
planeta. Daí advém a série dos 7 planetas, dos 7 metais, das 7 cores etc.
Durante os 6 primeiros milênios, Deus e o Espírito do Mal combatem pela
supremacia e, quando o Mal parecia vitorioso, Deus enviou o Deus solar Mitra
(Apolo, Hélio) que domina o sétimo milênio. No fim deste período setenal, a
potência dos planetas cessa e um incêndio universal recobre o mundo.
Curioso nesta época é a biografia do rei Mitrídate VI Eupator, rei do
Ponto, anterior ao nascimento de Cristo. Seu nascimento foi anunciado por um
cometa, um raio caiu sobre o recém-nascido, deixando-lhe uma cicatriz. A educação
deste rei é uma longa série de provas iniciáticas. É visto durante sua coroação
como uma encarnação de Mitra. A biografia real é muito próxima do Natal
cristão. Ele será o último rei de uma longa lista de grandes reis Mitridates.
Conquistou quase toda a Ásia Menor por volta de 88 a. C., mas foi derrotado
pelos romanos em 66. Provavelmente aliou-se aos piratas Cilicianos dos quais
falaremos a seguir. Foi, também, o primeiro monarca a praticar a imunização
contra os venenos, a qual, segundo o Aurélio, se adquire por meio da repetida
absorção de pequenas doses deles, gradualmente aumentadas, daí o nome
mitridatismo.
A grande popularidade e o apelo do mitraísmo como uma forma refinada e
final do paganismo pré-cristão foi discutida pelo historiador grego Heródoto,
pelo biógrafo, também grego, Plutarco, pelo filósofo neoplatônico Porfírio,
pelo herético gnóstico Orígenes e por São Jerônimo, um dos pais da Igreja.
O contato com o mundo helênico desenvolvia-se essencialmente a partir de
Comageno na Ásia Menor. Daí surgem os primeiros testemunhos sobre Mitra, como
um Deus dos Mistérios no primeiro século a. C., curiosamente, no seio dos
piratas Cilicianos em luta contra os romanos. É dentro deste contexto de resistência
e luta que Mitra pode tornar-se um Deus iniciático. Plutarco diz que celebravam
em segredo ‘os mistérios de Mitra’. Sua capital era Tarso, onde nasceu S.
Paulo, e Perseu era o seu Deus fundador. O símbolo da cidade era o combate do
Leão com o Touro. Paralelamente a isto, os Magos medas se fixaram na Ásia
Menor e na Mesopotâmia, infiltrando-se cultural e religiosamente no mundo helênico,
principalmente, como vimos, na aristocracia. Cita-se que o rei Tiridate quando
veio a Roma para ser coroado rei da Armênia por Nero, dirigiu-se ao imperador
chamando-o por Mitra (Deus Sol).
O Mitra romano faz sua ‘rentrée’ no Império através dos Mistérios. O
termo “mistério” possui um sentido muito preciso. Os mistérios gregos, e
depois romanos, foram numerosos: Dionísio, Elêusis, Cibele, Átis e Deméter.
Podem ser ainda citados os de Ísis, Sarápis, Sabázios, Júpiter Doliqueno
etc. Uma certa bruma enigmática envolvia todos estas cerimônias dos mistérios,
mas o comum entre eles, era o aspecto ‘solar’, apesar de todos esconderem
sua identidade essencial. Desnecessário dizer que, por serem os mistérios,
secretos e ocultos, poucos documentos escritos chegaram até nossos dias. O
pouco que se sabe sobre eles advém da patrística cristã que, na ânsia de
combater o mitraísmo, terminou por nos legar uma série de descrições sobre o
mesmo. Alguns autores gauleses chegam a afirmar que assim como a maçonaria foi
a religião clandestina da IIIª República Francesa, o mitraísmo sustentava
subterraneamente a ideologia da Roma Imperial.
A inoculação do veneno mitraíco no seio do Império, segundo Plutarco
(Vita Pompeu), foi o transplante, feito por Pompeu em 67 a. C., de
20.000 prisioneiros Cilicianos (uma província na costa sul oriental da Ásia
Menor) que praticavam os “ritos secretos” de Mitra. Daí, a epidemia mitraíca
se alastrou por todo o mundo romano, reforçada ainda pelos múltiplos contatos
das tropas de ocupação romana com as outras culturas mitraícas, tendo
atingido o seu zênite no século III, quando começou a travar uma luta de vida
e morte com o cristianismo. Tanto assim que do século II ao IV da nossa era, os
Mithrae (ou Mithraeum no singular) – templos dedicados ao culto do deus –
chegaram a ser mais de 40 em Roma. Um dos maiores templos construídos podem ser
encontrados hoje nos subterrâneos da Igreja de São Clemente, perto do Coliseu.
Esta adoração não se restringia somente à capital do Império, mas
principalmente às cidades portuárias da atual Itália: Óstia, Antium, no mar
Tirreno; Aquiléia, no Adriático, Siracusa, Catânia, Palermo etc.
Paralelamente, a propagação se dá na Áustria, na Germânia, nas províncias
danubianas, na Polônia, na Hungria e Ucrânia e num movimento de volta, nas
províncias da Trácia e da Dalmácia, num retorno à Grécia e a Macedônia. No
terceiro século, encontram-se traços mitraícos na Criméia, no Eufrates, no
Egito e sobretudo no Maghreb. Curioso é que a Espanha e Portugal sofreram pouquíssima
influência. A Gália oriental, renana e belga, pagou o seu tributo, assim como
também a Aquitânia. Encontram-se vestígios na região parisiense, como também
em Boulogne sur Mer. Na Inglaterra, a concentração se dá em Londres e na região
norte, ao longo do muro de Adriano, até Canterbury. Locais de adoração mitraíca
foram encontrados também, na Bretanha, na Romênia, na Alemanha, na Bulgária,
na Turquia, na Pérsia, na Armênia, na Síria, em Israel etc. No final do século
III, Mitra era adorado da Escócia à Índia, chegando até a oeste da China,
onde era conhecido como Amigo, nome que indica uma filiação védica.
Mitra passa a ser representado como um general militar. É o Amigo do
homem durante a sua vida e seu protetor contra o mal após a sua morte. Mitra não
é só propagado pelos militares romanos como também pelos funcionários,
comerciantes, artistas, meio jurídico e financeiro e, principalmente nos círculos
do conhecimento. Ao contrário da Grécia, penetra nos meios mais modestos e
populares. Por mais de trezentos anos, os romanos adorarão Mitra.
Em meados do segundo século, seu culto atinge a cúpula militar. Os neófitos
começaram a congregar-se sob os Flávios, espalhando-se o culto na época dos
Antoninos e Severos. Os próprios Imperadores se fizeram iniciar nos mistérios,
havendo suspeitas de que Nero tenha sido um deles. Contudo, é Cômodo (185-192)
que parece ter sido o primeiro a se converter ao culto, seguido por Sétimo
Severo. Caracala (211-217) encoraja o culto do Deus solar sob a forma de Sol
invictus. O culto foi reintroduzido por Aureliano (270-275). O apoio oficial virá,
entretanto, no reinado de Diocleciano em 307. Apesar destas emanações, não
parece que Mitra tenha recebido uma preponderância imperial na corte dos Césares
pagãos. Deve-se notar, ainda, que do mesmo modo que o cristianismo, sua influência
não foi estendida ao meio rural. Alguns autores sugerem que isto se deveu à
exclusão das mulheres nas funções litúrgicas. II – Representações Litúrgicas e Ritualísticas do Deus
Mitra
Mitra é um Deus de forma humana. É representado sob a forma de um jovem
montado num touro e, com uma das mãos, empunha uma adaga para o degolar. Alguns
afrescos, encontrados na parte mais central do Mithraeum (templo subterrâneo de
adoração), representam Mitra com a cabeça voltada para o alto ou para o lado,
significando desgosto com o que está fazendo. Sincreticamente, encontram-se
ainda imagens de Teseu matando o Minotauro ou Perseu chacinando a Górgona ou,
ainda, Hércules esfolando o Touro. Mitra está vestido em trajes orientais e
muitas vezes circundado por dois meninos ou pastores que podem simbolizar o
levante e o ocaso, o Outono ou a Primavera, as marés – montante e vazante - e
ainda, a vida e a morte. A cena possivelmente se passa numa gruta. Um corvo,
mensageiro do sol, está quase sempre na borda do rochedo. Vê-se ainda um cão
se aproximando para beber o sangue da vítima, uma serpente enroscada dentro de
uma pequena cratera e ao redor de um recipiente, um leão ameaçador, espigas de
trigo sobre o rabo do touro e um escorpião que pica os testículos do animal
morto.
A figura do touro tem sido exaltada através do mundo antigo pela sua força
e vigor. Os mitos gregos falavam sobre o Minotauro, um monstro metade-homem
metade-touro que vivia no Labirinto nos subterrâneos da ilha de Creta e que
exigia um sacrifício anual de seis mancebos e seis donzelas antes de ter sido
morto por Teseu. Peças de arte minóica representavam ágeis acrobatas saltando
bravamente sobre o dorso de touros. O altar, em frente ao Templo de Salomão em
Jerusalém, era adornado com chifres de touros que acreditavam ser portadores de
poderes mágicos. O touro era também um dos quatro tetramorfos, ou seja um dos
símbolos animais associados com os quatro evangelhos. A mística deste poderoso
animal ainda sobrevive atualmente nas touradas da Espanha e do México,
no rodeio dos ‘cowboys’ dos EEUU e agora, também, no Brasil. Os
estudos clássicos do belga Franz Cumont (1913) que provaram ser os mistérios
mitraícos derivados das antigas religiões iranianas explica parcialmente como
a cena da morte do Touro – conhecida como tauroctonia - inexiste na mitologia
iraniana com a figura de Mitra. Cumont responde que teria encontrado textos que
apresentavam o matador do touro como Ahriman, ou seja a força cósmica do mal
na religião iraniana. Somente
a partir do Primeiro Congresso Internacional de Estudos Mitraícos (1971)
levantaram-se novas hipóteses para explicar esta incongruência. A iconografia
tauroctônica seria, na verdade, um mapa astronômico! Tais hipóteses, segundo
os estudos de David Ulansey, baseiam-se em dois fatos: i) cada figura, na
tauroctonia padrão, teria um paralelo com um grupo de constelações ao longo
de uma faixa contínua no céu: o boi tem um paralelo com a constelação do
Touro, o cachorro com o Cão Menor, a serpente com a Hidra, o corvo com o Corvus
e o escorpião com Scorpio; ii) a iconografia mitraíca, em geral, é permeada
por imagens astronômicas explícitas: o zodíaco, os planetas, o sol, a lua e
as estrelas são permanentemente encontrados na arte mitraíca.
A pesquisa de Ulansey sobre cosmologia antiga, principalmente a
astronomia greco-romana, focaliza o seu caráter “geocêntrico” no tempo dos
mistérios mitraícos, no qual a terra era fixa e imóvel no centro do universo
e tudo girava à sua volta. Nesta cosmologia, o universo era imaginado como
estando contido numa grande esfera no qual as estrelas eram fixadas em várias
constelações. Hoje sabemos que a terra tem um movimento de rotação sobre o
seu eixo cada dia, mas na antigüidade acreditava-se que, uma vez por dia a
grande esfera das estrelas fazia a sua rotação sobre a terra, oscilando num
eixo que corria da abóboda do polo norte para o do sul. No seu giro, a esfera cósmica
carregava o sol, explicando assim a oscilação do mesmo sobre a terra. Além
deste movimento, os antigos atribuíam um segundo movimento mais vagaroso.
Enquanto hoje sabemos que a terra gira ao redor do sol durante o ano, na antigüidade
acreditava-se que, durante o ano, o sol – que estava bem mais próximo do que
as outras estrelas - viajava sobre a terra, traçando um grande círculo no céu
tendo como fundo as outras constelações. Este círculo, traçado pelo sol
durante o ano, era conhecido como o zodíaco, uma palavra significando
‘figuras vivas’, pois o sol passeava, durante o ano, sobre doze diferentes
constelações que representavam diversas figuras de animais e formas humanas.
Visto que os antigos acreditavam na existência real de uma grande esfera de
estrelas, suas várias partes – tais como os eixos e os pólos – jogavam um
papel crucial na cosmologia de seu tempo. Particularmente, um importante
atributo da esfera das estrelas era muito mais bem conhecido do que hoje: o
equador, denominado na época de equador
celeste. Assim como o equador terrestre é definido como um círculo ao
redor da terra eqüidistante dos pólos, também o equador celeste era entendido
como um círculo ao redor da esfera das estrelas eqüidistante dos pólos desta
mesma esfera. O círculo do equador celeste era visto como tendo uma importância
especial por causa dos dois pontos em que ele cruzava com o círculo do zodíaco:
estes dois pontos eram os equinócios, ou seja, o local onde o sol, no seu
movimento através do zodíaco, cortava-o no primeiro dia da primavera e no
primeiro dia do outono. Assim, o equador celeste era responsável pela definição
das estações e, por esta razão, tinha uma significação concretíssima ao
lado seu significado astronômico mais abstrato. Um
outro fato sobre este equador celeste é decisivo: como não estava fixo, possuía
um movimento lento alcunhado de “precessão dos equinócios”. Este
movimento, sabemos hoje, é causado por uma oscilação na rotação da terra
sobre seu eixo. Como resultante desta leve oscilação, o equador celeste parece
mudar sua posição no curso de milhares de anos. Este movimento é conhecido
como a precessão dos equinócios por que o seu efeito observável mais
facilmente é uma mudança na posição dos equinócios ou seja, os locais onde,
como vimos acima, o equador celeste cruza o zodíaco. Desta maneira, esta
precessão resulta num movimento vagaroso para trás ao longo do zodíaco,
passando sobre uma constelação do zodíaco a cada 2.160 anos e percorrendo
todo o zodíaco a cada 25.920 anos. Hoje, por exemplo, o equinócio da primavera
está no final da constelação de Peixes, mas, em algumas dezenas de anos,
estará entrando em Aquário – já se fala muito, atualmente, na Era
de Aquário. A grosso modo, o equinócio da primavera estava em Touro entre
4.000 a 2.000 a.C. mais ou menos; em Áries de 2000 a.C. até o nascimento de
Cristo, ou seja nos tempos greco-romanos; a Era de Peixes – o cristianismo
–, da gênese do mesmo até a nossa mudança de milênio e de 2000 e poucos em
diante, a tão decantada Era de Aquário.
Ulansey descobriu que, neste fenômeno da precessão dos equinócios,
estaria a chave para desvendar o segredo do simbolismo astronômico da
tauroctonia mitraíca. Para as constelações desenhadas nas tauroctonias mais
comuns havia uma coisa constante: todos eles estavam posicionados no equador
celeste como na época imediatamente precedente à Era de Áries dos tempos
greco-romanos. Durante esta idade anterior, que podemos chamar de Era de Touro
(como vimos durou mais ou menos de 4.000 a 2.000 a.C.), no equador celeste da época
estavam Taurus (Touro, o equinócio da primavera), Canis Minor (o Cão), Hydra
(a serpente), Corvus (o Corvo) e Scorpio (o Escorpião que estava no extremo
oposto do Touro, ou seja, o equinócio do Outono). A coincidência é
impressionante, todos estas constelações estão representadas nas
tauroctonias. Em
muitas ilustrações tauroctônicas, a cabeça de Mitra é nimbada de estrelas.
Assim, a morte do Touro representaria, no zodíaco, o fim da Era de Touro e o
começo da Era de Aries no equinócio da primavera e Mitra, o deus
Todo-Poderoso, que poderia reger e mudar todo o sistema cósmico. Nos escritos
do filósofo neoplatônico Porfírio, encontra-se a alusão de que a caverna,
onde se posiciona o Mithraeum e está desenhada a tauroctonia, na sua parte mais
recôndita, seria, na verdade, uma ‘imagem do cosmos’.
Como curiosidade, Freud e Jung tiveram uma divergência básica sobre a
interpretação psicanalítica do morte do touro, sendo um dos pontos básicos
de divergência e conflito entre ambos, resultando, posteriormente, em separação
definitiva.
Mitra, Deus solar, também é representado com a cabeça de um Leão
quando é saudado com o título de Sol invictus. São os afrescos, encontrados
em Mênfis, com as coxas peludas, patas de caprino e a cabeça radiada. Mitra
Leoncéfalo, portando as chaves, é outra imagem lapidar, pois fora das cenas
tauroctônicas, ele é representado em momentos de refeição ou de iniciação.
No tocante ao culto e à liturgia, estes se faziam no interior do Mithraeum e na
presença dos fiéis. A liturgia constava de ofícios e orações; manducação
de pão e sumpção de água e vinho, acompanhadas de fórmulas sagradas; danças
de luzes e fórmulas de êxtase; orações ao nascer do Sol, ao meio-dia e ao
ocaso. As festas realizavam-se no sétimo mês do ano, mas todos os meses se
festejava uma semana inteira, sendo cada dia destinado a um planeta.
Comemorava-se, de modo especial, o dia natalício do deus (Natalis
Invicti), a 25 de dezembro. Os ofícios dos templos faziam-se à luz de
velas, com toques de sinos e com hinos, cujo teor não se conhece, porque se
perderam.
O Mithreum típico era uma pequena câmara retangular subterrânea
(25x10m) com um teto arqueado. Um corredor dividia o templo ao meio, com bancos
de pedra dos dois lados de 80 cm de altura no qual os membros do culto podiam
descansar durante suas reuniões. Um mithraeum podia comportar de 20 a 30
pessoas. No fundo do templo, no final do corredor, havia sempre uma representação
– normalmente um relevo entalhado e algumas vezes uma escultura ou pintura –
do ícone central do mitraísmo: a tauroctonia ou a cena da morte do touro,
conforme descrito acima. Outras partes do templo eram decoradas com várias
cenas e figuras. Deveria ser implantado perto de uma fonte ou curso d’água
ou, na falta destes, de um poço. Havia centenas, talvez milhares, de templos
mitraícos no Império Romano.
Os adeptos de Mitra não se contentavam com um misticismo contemplativo.
O seu culto encorajava a ação e um grande rigor moral. Para os soldados, a
resistência ao mal e às ações imorais representavam uma vitória tão
importante quanto as militares.
Reuniam-se, em pequenos grupos, unidos e solidários pelo ritual iniciático.
Partilhavam o banquete sacramental com os deuses e finalizavam com uma aliança
entre o sol e Mitra. O repasto, sobre os despojos de um touro, era seguido de um
sacrifício, muitas vezes de um touro, ou de animais simbolizando o touro:
cabras, javalis e/ou galináceos.
Consagrava-se o pão e a água, bebia-se o vinho que simbolizava o sangue
do touro e comia-se a carne. O processo da iniciação mitraíca requeria a
subida simbólica de uma escada cerimonial com sete degraus, cada um feito de um
metal diferente para simbolizar os sete corpos celestiais. Simbolicamente
galgando esta escada cerimonial através de sucessivas iniciações, o neófito
podia atravessar os sete níveis do céu. Os sete graus do mitraísmo eram:
Corax (Corvo), Nymphus ( Noivo), Miles (Soldado), Leo (Leão), Peres (Persa),
Heliodromus (Corrida do Sol) e Pater (Pai); cada grau era protegido por um
planeta (na cosmologia da época): Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter, a Lua, o
Sol e Saturno. Cada dignitário apresentava a vestimenta e a máscara
correspondente ao seu grau. Como todo rito mitraíco a estrutura hierárquica
era setenária. Os adeptos tinham a sua divisão de papéis: o chefe (pater), o
papel de Mitra, o heliodromo (sol), o corvo apresentavam as carnes e as bebidas
aos convivas dentro de uma ordem hierárquica. A carne era assada sobre os
altares dentro da concepção do sacrifício do mundo greco-romano.
Os rituais iniciáticos constavam da admissão dos fiéis por
“inductio”. Antes de serem admitidos, os candidatos eram interrogados,
sondados, informados num local distinto do templo. Em seguida, eram submetidos a
uma série de provas, nus e com os olhos vendados, marchavam às apalpadelas
diante de um mistagogo para finalizar se ajoelhando diante de um personagem que
portava uma tocha diante de seus olhos. A seguir, com as mãos atadas às
costas, colocavam um joelho no chão ao mesmo tempo que um sacerdote cingia-lhes
a cabeça com uma coroa. No final, prostravam-se como mortos. Tudo isto faz
parte da tipologia iniciática das sociedades secretas em geral: olhos vendados,
resistência física, morte simbólica, etc.
Reprova-se, nos adeptos de Mitra, a propensão aos sacrifícios humanos.
Tal suposição advém de se ter encontrado, nos diversos Mithrae, restos de
esqueletos humanos.
Apesar de todos os estudos antigos e modernos, conhece-se mal a “teodicéia”
mitraíca. Sabe-se, contudo, que os “mistérios” da Antigüidade revelam um
mito ou uma história santa que legitima a liturgia. É uma certa explicação
do Mundo e da passagem do homem sobre o mesmo que dá toda a força aos “mistérios”,
sejam eles de Mitra, de Elêusis, em suma de quase todos. A religião de Mitra
se independentizou de suas origens orientais, agindo como um imã que atraiu
diversos aportes: gregos, babilônicos, romanos etc. Finalizou como um Deus
adaptado ao Império Romano, explicando assim o seu sucesso. Uma das grandes
ironias da história é o fato de que os romanos terminaram por adorar um deus
de um de seus maiores inimigos políticos: os persas. O historiador romano
Quintius Rufus assinala no seu livro História
de Alexandre que antes de ir batalhar contra os “países anti-mitraícos”
de Roma, os soldados persas oravam a Mitra pela vitória. Sem embargo, tendo as
duas civilizações inimigas estado em contato de conflito aberto ou latente por
mais de mil anos, os adoradores de Mitra migraram dos persas, através do frígios
da Turquia, até os romanos.
Numa análise simbólica final, o culto de Mitra revela uma história do
Mundo. Saturno (ou Cronos, representando o Tempo) reinava soberano sobre o
Mundo, quando entregou a Júpiter o raio, uma arma letal que serviu para
derrotar os gigantes e gênios do mal. Alguns autores hipotetizam que este gênio
do mal poderia ser o Oceano que cobria a Terra.
Mitra, Deus petrógeno, não descende aqui do Céu, pois surge
miraculosamente de uma rocha com um barrete asiático, tendo em uma das mãos
uma tocha luminosa e na outra, a adaga. Pastores assistem e ajudam este
nascimento. Mitra, em seguida, é encontrado junto de uma árvore ceifando o
trigo. Depois é visto atirando com um arco sobre uma parede rochosa onde jorra
uma fonte que sacia os pastores. Alguns autores concluem que as forças do mal
(Oceano?) tentaram aniquilar os humanos pela fome e pela sede e que Mitra,
salvador dos homens e Deus protetor, interveio para os alimentar e saciar sua
sede, não só dos homens como dos rebanhos. Nota-se, também, que o papel
“justiceiro” das tradições asiáticas não desapareceu, pois Mitra vem em
socorro do Mundo para fazer respeitar a Lei Divina.
Começa, agora, a perseguição ao Touro. O touro está em conjunção
com a lua, seus dois chifres formam o crescente. O touro contem os elementos
vivos (o esperma do touro purificado pelo raio da lua produzirá os espécimens
animais). Mitra tem a missão de subtrair estas forças vivas das tentações
maléficas. O touro se refugia numa construção mas dois pastores ateiam fogo
ao local. Mitra alcança o animal, agarra os seus cornos e consegue cavalgá-lo.
Depois, prende as patas traseiras do animal, arrasta-o até a gruta onde um
corvo, mensageiro do Sol, impõe-lhe a tarefa de matar o animal insubmisso. A
morte do touro atrai uma serpente e um cachorro que se apressam em sugar o
sangue que jorra da ferida enquanto um escorpião (algumas vezes um caranguejo
ou um ‘câncer’) fisga os testículos da vítima para aspirar sua força
vivificante.
Cumont afirma que espigas de trigo saem da ferida, juntamente com o
sangue que escorre da calda do touro. Do corpo da vítima moribunda nascem as
ervas e as plantas salutares... De sua medula espinal germina o trigo que dá o
pão, de seu sangue, a vinha que produz a beberagem sagrada dos mistérios. É
após a morte do touro que um conflito se abate entre Hélio e Mitra. O Sol,
ajoelhado diante da tauroctonia, perde sua prerrogativa de astro soberano. Mitra
torna-se o verdadeiro Sol Invictus que vem salvar a criação. O Sol reconhece a
preeminência de Mitra pois se faz iniciar no grau de Soldado (Miles). III – O Cristianismo Triunfante
O fim do mitraísmo coincide com o seu zênite no século III d.C. e vem
acompanhado da entronização do cristianismo
como religião do Império Romano. Como vimos, o mitraísmo sofria o passivo de
praticar uma liturgia elitista em pequenas sociedades secretas na qual as
mulheres eram excluídas. Não se propunha ser uma reli-gião de massa, aberto a
todos, como o cristianismo. Era uma religião otimista e Mitra teve o grande
defeito de não ter morrido para salvar o mundo. Como
os persas eram inimigos hereditários do Império Romano, os cristãos fizeram
de tudo para ligar o mitraísmo a uma religião “inimiga”, persa por excelência,
pois os romanos não deveriam adorar um deus importado do adversário. Apesar de
tudo parece que Constantino manifestou uma certa simpatia pelo mitraísmo,
principalmente na sua versão de “Sol invictus”. Quando este primeiro
imperador cristão colocou todas as religiões pagãs na clandestinidade, poupou
os mitraístas pois estes possuíam muita influência junto aos militares que
eram o cimento do Império. O ‘punctus saliens’ no qual os cristãos
atacavam os mitraístas era a sua propensão aos sacrifício animais. Quando
estes sacrifícios foram interditados, bloqueou-se um dos fundamentos vitais do
culto mitraíco. O
combate mortal entre o cristianismo e o Mitra pagão pode ser lido nos escritos
de Tertuliano (160-220 d.C.) ao afirmar que esta religião utilizava
indevidamente o batismo e a consagração do pão e do vinho. Dizia, ainda, que
o mitraísmo era inspirado pelo diabo que desejava zombar sobre os sacramentos
cristãos com o intuito de levá-los para o inferno. Não obstante, o mitraísmo
sobreviveu até o século Vº em remotas regiões dos Alpes entre as tribos dos
Anauni e conseguiu sobreviver no Oriente Próximo até os dias de hoje.
No curto reinado do imperador Juliano, sobrinho de Constantino, Gibbon
afirma que se assistiu a um retorno temporário ao mitraísmo, tendo este
Imperador se reconhecido até mesmo como adepto e chegando a construir um
Mithraeum nos calabouços de seu palácio em Constantinopla. Seguiu-se um período
de tolerância quando, sob o reinado de Teodósio (375-395), o cristianismo
tornou-se religião de Estado e o paganismo foi definitivamente interditado. O
mitraísmo sobreviveu em Roma até 394 sendo que a Basílica de São Pedro foi
construída sobre o local do último culto mitraíco: o Phrygianum. A partir daí,
o cristianismo construiu, boa parte de seus templos, acima de cavernas que
continham Mithrae, seja em Roma seja nas províncias do Império. A catedral de
Canterbury e a de São Paulo em Londres, o mosteiro do Monte Saint-Michel e
algumas catedrais em Paris estão construídas sobre antigos Mithrae em ruínas.
Os pontos comuns entre o cristianismo e o mitraísmo são inúmeros. O
nascimento de Cristo é anunciado por uma estrela assim como o de Mitridate
Eupator. Ambos são nascidos de uma Virgem Imaculada que toma o nome de Mãe de
Deus. A caverna, a gruta são os locais de nascimentos tanto de Cristo quanto de
Mitra. A presença de pastores e de seu rebanho também estão presentes em
ambos os nascimentos. A gruta de Belém é prenhe de luz e Mitra é um deus
solar. Além do mais, o ouro, símbolo do Sol, tem uma importância crucial na
liturgia cristã. Deus é Amor mas também Luz. O nascimento dos dois deuses foi
a 25 de dezembro, solstício de Verão no Hemisfério Norte. Sabe-se que Cristo
não teria nascido no dia 25 e que, somente com o fim do mitraísmo, a Igreja
Cristã, “cristianizou” o dia como a festa do Natal. Tanto Cristo como Mitra
eram castos e celibatários. Todas as duas religiões são fundadas sobre um
sacrifício salvador do Mundo, mas com a morte de Cristo, o cristianismo tira a
sua vantagem e sua superioridade. A morte do Touro encontra um símile na luta
de São Jorge com o dragão. A vontade de neutralizar as potências do mal, a
guerra entre as duas potências e a vitória do Bem. A consagração do pão e
do vinho estão presentes entre os cristãos e os iniciados de Mitra. No grau de
Soldado (Miles), o iniciado é marcado com uma cruz de ferro em brasa sobre a
fronte. A imortalidade da alma e a ressurreição final. As igrejas antigas
possuem criptas subterrâneas que evocam os templos mitraícos. A fraternidade e
o espírito democrático das primeiras comunidades cristãs se assemelham muito
ao mitraísmo. A fonte jorrando da rocha, a utilização de sinos, os livros e
as velas, a água santa e a comunhão, a santificação do Domingo (fora da
tradição judaica do Sábado), a insistência numa conduta moral, o sacrifício
ritual, a angeologia, a teologia da luz, dualidade deus-diabo, o fim do mundo e
o apocalipse são também comuns em ambas as religiões.
Outro símile interessante seria entre Mitra e Papai Noel. Vestimentas
vermelhas e barrete frígio são comuns a ambos como também as velas
incrustadas em árvores (de Natal) nas cerimônias natalinas. IV – Sobrevivência Mitraíca e sua Influência na Maçonaria
Encontram-se traços mitraícos nas diversas gnoses
e principalmente nas heresias dualistas cristãs. O esoterismo do gnosticismo
cristão foi muito influenciado pelas religiões egípcias e iranianas. Os
segredos, revelados aos “Perfeitos”, referiam-se aos mistérios da ascensão
e descida de Cristo através dos Sete Céus habitados pelos anjos. Autores
modernos chegam a afirmar que o gnosticismo é um fenômeno pré-cristão de
origem iraniana que poluiu o cristianismo nascente. A influência dos cultos
iranianos e especificamente mitraícos sobre a gnose de Mani são insofismáveis.
Desde o século III d. C., o segredo mitraíco força as portas da barca de São
Pedro. A pressão deste dualismo maniqueísta percorre toda a Idade Média. O
bogomilismo da Europa Oriental inicia a sua trajetória a partir do século X
colocando Satã no lugar de Deus, infligindo um poder considerável sobre as
heresias Cátaras e Albigenses no alvorecer do século XII na Europa Ocidental.
Estas heresias gnósticas cristãs professavam a asserção de que Deus não
teria criado o Mundo, estando este sob o domínio de Satã – assimilado ao
demiurgo Yahvista. O verdadeiro Deus estaria tão distante da Terra onde se dão
estes embates entre o Bem e o Mal. Apesar disto teria enviado Cristo para salvar
os homens ao mostrar-lhes o método da libertação.
Outra difusão de um mitraísmo mitigado estaria entre os Cavaleiros do
Templo, pois estes sofreram a influência dos maniqueus. No culto a Baphomet,
também conhecido como o filho de Mitra, havia um ícone representado por um
Touro ornado com uma chama entre seus cornos...
O culto de Mitra enquanto sociedade iniciática tem certas semelhanças
com a maçonaria propriamente dita. A fraternidade entre os membros, a exigência
de uma conduta moral, a vontade de defender, de maneira ativa e não
contemplativa, o bem e a virtude são, ao mesmo tempo, padrões maçônicos e
mitraícos. A defesa da ordem política e social, o culto exclusivamente
masculino são também pontos comuns. Ritualisticamente encontram-se os
seguintes traços: a mania pelo número 7, a existência de graus iniciáticos,
as velas, os altares, a Luz, as palavras de passe, etc. O templo maçônico pode
ser visto como uma gruta mitraíca ou se não se quiser ir muito longe o símile
poderá ser feito com a câmara de reflexões; o teto estrelado do templo tem
profunda semelhança com os mitraícos. Os templários, a tradição judaica e
cristã foram os grandes transmissores de símbolos mitraícos. Os dois São Joães
- de Inverno e de Verão - tem profunda vinculação com os dois pastores da
tauroctonia. O sacrifício ritual fundador de Hiram está muito próximo do
sacrifício ritual do Touro. O corvo no acampamento militar, encontrado nos
altos graus do escocesismo, é uma prova cabal da influência mitraíca.
Outro símile estaria no mais baixo grau de iniciação – o grau de
Corvo (Corax) – simbolizava a morte do novo membro, o qual deveria renascer
como um novo homem. Isto representava a fim de sua vida como um não-crente (ou
descrente) e cancelava pretéritas alianças de outras crenças inaceitáveis.
Curioso salientar que o título de Corax (Corvo) originou-se com o costume zoroástrico
de expor os mortos em elevações funerárias para ser comido pelas aves de
rapina. Este costume continua, até os dias de hoje, sendo praticado pelos
Parsis da Índia, descendentes dos persas seguidores de Zaratustra.
O simbolismo sexual, encontrado em diversos rituais maçônicos, poder
ter um paralelo com o touro, pois este era uma óbvia representação da
masculinidade pela natureza de seu tamanho, de sua força e de seu vigor sexual.
Ao mesmo tempo, o touro simbolizava as forças lunares em virtude de seus cornos
e as forças telúricas em virtude de ter as quatro patas assentadas no solo. O
sacrifício do touro simboliza a penetração do princípio feminino pelo
masculino, a vitória da natureza espiritual sobre a animalidade, tendo um
paralelo com as imagens simbólicas de Marduk destruindo Tiamat, Gilgamesh
aniquilando Huwawa (grafia de
Eliade), São Miguel dominando Satã, São Jorge vencendo o dragão, o Centurião
lancetando Cristo e, por que não nos referirmos a um ícone moderno: Sigourney
Weaver lutando contra o Alien?
Finalmente, o mitraísmo era, concomitantemente, um culto dos mistérios
e uma sociedade secreta. Tal como os ritos de Deméter, Orfeu e Dionísio, os
rituais mitraícos admitiam candidatos em cerimônias secretas cujo significado
era do conhecimento somente do iniciando. Como
todos os outros ritos de iniciação institucionalizados do passado e do
presente, este culto dos mistérios permitia aos iniciados ser controlado e
posto sob o comando de seus líderes. Ao ser iniciado, o neófito tinha que
provar sua coragem e devoção nadando através de rio caudaloso, escalando um
rochedo íngreme ou pulando através das chamas com suas mãos atadas e os olhos
vendados. Ao iniciado era também ensinado o segredo das palavras de passe mitraícas
que eram usadas para identificação mútua como também era auto-repetida freqüentemente
como um mantra pessoal. V – Como seria um Mundo Mitraíco à Guisa de Conclusão
O legado mitraíco resulta em comportamentos usados ainda hoje em dia,
tal como o apertar as mãos e o uso da coroa pelo monarca. Os adoradores de
Mitra foram os primeiros no Ocidente a pregar a doutrina do direito divino dos
reis. Foi a adoração do sol, combinada com o dualismo teológico de
Zaratrusta, que disseminou as idéias sobre as quais o Rei-Sol Luis XIV
(1638-1715) na França e outros soberanos deificados
na Europa mantiveram o seu absolutismo monárquico.
Alguns estudiosos afirmam que, durante o IIº e o IIIº século d.C.,
nunca a Europa esteve tão perto de adotar uma religião indo-ariana quando
Diocleciano, oficialmente, reconheceu Mitra como o protetor do Império Romano,
nem mesmo durante as invasões muçulmanas.
Especulações teóricas anglo-saxãs hipotetizam que se um golpe de
estado, dado pelos centuriões adoradores de Mitra, tivesse impedido Constantino
de estabelecer o cristianismo como a religião oficial do Império, o mitraísmo
poderia possivelmente sobreviver através dos séculos seguintes com a assistência
teológica da heresia maniquéia e seus epígonos, assumindo “ipso facto”
que os ensinamentos de Jesus teriam, de alguma maneira, sido simultaneamente
anulados e, talvez, com um número crescente de crucificações. Esta ausência
do cristianismo, devido à continuação do mitraísmo no Ocidente, teria
obstado o crescimento do Islã no século VII e a violência das Cruzadas
necessariamente não teria ocorrido. Assumindo, ainda, que o Islã não teria,
assim, conquistado religiosamente a Pérsia, a adoração de Mitra poderia ter
continuado no panteão de Zaratrusta. Como conseqüência, o mitraísmo poderia
ter penetrado com mais força nos panteões da Índia e da China e,
possivelmente, teria aportado nos países do Extremo-Oriente.
Continuando com a especulação saxã que resultou na “lenda negra”
da dominação espanhola no Novo Mundo, Colombo realizou os seus descobrimentos
em pleno período da Inquisição, fenômeno este representativo da culminância
de mais de mil anos de uma das maiores religiões monoteístas semítica – o
cristianismo. Se o mitraísmo tivesse sobrevivido o milênio até o ano de 1492,
os povos indígenas das Américas poderiam ter sido expostos à adoração de
Mitra no lugar dos missionários católicos. Imaginaríamos, assim, o
Taurobolium – ritual de regeneração ou sacrifício do touro, no qual o
sangue do animal era derramado sobre o iniciado – sendo sido transposto e
sincretizado com o ritual da caça do búfalo dos índios das planícies do
Oeste americano e a cerimônia do sacrifício dos maias, incas e astecas, e
provavelmente, estes impérios não teriam sido aniquilados pelos brutais
conquistadores europeus em nome do Rei e de Cristo.
Se non è véro,
è bene trovato... VI – BIBLIOGRAFIA
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